Em uma operação logística discreta, o Museu Nacional no Rio de Janeiro recebeu em 4 de julho um manto tupinambá, enriquecendo seu acervo em reconstrução após o incêndio de 2018.
Essa peça, medindo aproximadamente 1,20 metros de altura por 80 centímetros de largura, é considerada sagrada pelos povos tupinambás.
Majoritariamente confeccionado com penas de guarás e complementado por plumas de papagaios, araras-azuis e amarelas, o manto foi doado pelo Museu Nacional da Dinamarca, que possui quatro outros mantos semelhantes desde 1689.
Embora existam 11 mantos registrados em diversas partes do mundo, este é o primeiro a integrar o acervo de um museu brasileiro.
Segundo a pesquisadora Amy Buono, da Universidade de Chapman, todos os outros mantos conhecidos estão localizados na Europa:
- Copenhague, no Museu Nacional da Dinamarca: 4 mantos;
- Florença (Itália), no Museu de História Natural: 2 mantos;
- Basileia (Suíça), no Museu das Culturas: 1 manto;
- Bruxelas (Bélgica), no Museu Real de Arte e História: 1 manto;
- Paris (França), no Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas: 1 manto;
- Milão (Itália), na Biblioteca Ambrosiana: 1 manto.
A professora Buono também destacou que Berlim já possuía um manto, emprestado do Museu de Etnologia de Dresden, que foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial.
As negociações para a devolução do manto ao Brasil foram longas e delicadas.
Glicéria Tupinambá, artista e líder indígena, recebeu um pedido do Museu Nacional em 2022 para solicitar o manto. Inicialmente, ela hesitou, considerando que a peça simboliza um ancestral e não um mero objeto.
Após uma consulta aos “encantados”, entidades sagradas na cultura tupinambá, ela decidiu atender ao pedido. Glicéria teve que ouvir os cinco mantos na Dinamarca e, após três dias de escuta, apenas um se manifestou, expressando o desejo de retornar.
Ela então redigiu uma carta ao Museu da Dinamarca, com a assinatura do cacique Babau Tupinambá, que foi traduzida e enviada à instituição, resultando no retorno do manto ao Brasil.
Em 2023, um Grupo de Trabalho para Restituição de Artefatos Indígenas foi criado, inicialmente para tratar do manto tupinambá, ampliando o debate sobre a restituição de outros artefatos que foram levados durante a colonização.
Um dia antes da chegada do manto, o Brasil recebeu 598 artefatos de 40 povos indígenas que estavam no Museu de História Natural de Lille, na França.
Embora o Museu da Dinamarca tenha afirmado não haver negociações em curso para outras peças, o Museu Nacional revelou que o transporte do manto foi generosamente custeado pela instituição dinamarquesa.
Tesouros Desaparecidos
Durante as negociações, ficou acordado que os indígenas teriam acesso ao manto assim que chegasse ao Brasil. Passados 20 dias desde sua chegada, a peça ainda não foi apresentada à comunidade.
Atualmente, o manto está em câmara anóxica para sua proteção e permanecerá assim pelos próximos 30 dias. O Museu Nacional informou que, após os cuidados necessários, a peça será apresentada publicamente, em coordenação com os saberes dos povos indígenas.
Ainda não há uma data definida para essa apresentação, e Glicéria expressou dificuldade em acessar a peça. O Ministério dos Povos Indígenas está articulando uma cerimônia, prevista para o fim de agosto, junto ao povo tupinambá.
A história do reconhecimento do manto começou em 2000, durante a Mostra do Redescobrimento, quando anciões tupinambás viram a peça no Museu de Arte de São Paulo. Glicéria começou a tirar lições sobre a tradição, viajando por museus que possuem mantos em seus acervos, e agora busca descobrir onde existem outros mantos ao redor do mundo.
Terras Ainda Não Homologadas
Os tupinambás foram um dos primeiros povos indígenas contactados pelos portugueses ao chegarem ao Brasil. O território tupinambá, localizado no sul da Bahia, ainda aguarda a conclusão dos processos de demarcação.
Reconhecidos oficialmente como povo indígena em 2001, o processo de demarcação teve início em 2009, e os tupinambás ainda aguardam o andamento, que envolve várias etapas de análise e aprovação legal.
Glicéria destaca a relevância do retorno do manto em um momento crítico para os povos indígenas, reforçando a necessidade de reconhecimento de seus direitos territoriais. Ela menciona que a discussão sobre a demarcação de terras é vital e que a devolução do manto representa um passo significativo nessa luta.
O debate sobre a tese do marco temporal, que limita os direitos indígenas, continua ativo no Legislativo, refletindo a complexidade e a urgência da questão da demarcação das terras indígenas no Brasil.